Noite. Não é uma noite comum, repleta de sorrisos nas ruas e
pernas nas calçadas, disputando cada espaço que vagasse nos bares ao redor. Não
essa noite. Essa noite de fato estava acontecendo diante de mim. Mas a noite a
que me refiro está na verdade dentro de mim. Dominante. Sedenta. Buscando cada
vez mais se apossar do pouco de razão que ainda tenho. É um mundo complicado
esse. E não deveria ser assim. Cadê o meu prazer, cadê a minha felicidade?
Olho para os sorrisos do lado de fora do bar. Quantos desses
serão duradouros? Quantos passarão dessas míseras horas de confraternização? E
o copo de cerveja começa a me lembrar de uma musica-modinha de antigamente. E
liberto um pequeno sorriso ao pensar que realmente podemos nos afogar em um
copo de cerveja.
Lembro-me do caminho que trilhei ate aqui. Lembrei-me das
conversas que tive. Adoráveis, repletas de conteúdo. Leonardo esbanjava
cultura. Não sei se era verdade ou não. Cheguei ate a pensar na personagem do
filme de Woody Allen que parecia saber um pouco de tudo para parecer uma pessoa
de cultura elevada. Será? Será que era isso? Já não importava. O que importava
era que parecia que nos encaixávamos.
Parecia que tínhamos muitas coisas em
comum. Nada diferente do que Carlos tinha. Carlos me completava. Mentira.
Faltava alguma coisa. Ou não, talvez não faltasse. Talvez apenas faltasse um
pedaço em mim. Mas Carlos gostava de tudo que eu gostava. Claro que não tudo.
Nunca é tudo. E quanto mais descobrimos uma pessoa, mais coisas em comum
aparecem e muito mais coisas completamente diferentes vem à tona e esse desafio
de entender e aceitar diferenças que vale toda a luta.
O pensamento saia de Carlos e voltava para ele. Em tudo que
ele fez. As conversas, a atenção. Podia dizer que exagerada até. Mas eu adorava.
Eu estava encantada. Eu queria estar encantada. Precisava estar encantada. O
jeito de rir, o jeito de falar. A despreocupação falsa que ele mostrava diante
à vida. E fui fisgada. Em pouco tempo trocávamos frases picantes, indecentes. E
lembrar que nos encontramos em uma livraria me fazia ter certeza que eu estava
no filme de Claude Chabrol, sendo misteriosamente absorvida por uma vida
paralela de feliz infidelidade.
E tudo estava perfeito. Tudo não passaria de um pequeno caso,
talvez. Vai-se o amante, fica-se o amigo. Simples. Fácil. E a vida não é
fascinantemente complicada?
Tomo outro gole da cerveja. Acabo o quarto copo. Peço mais
um. O garçom se aproxima e diz:
- Você realmente vai beber sozinha?
- Sim. – respondi sem interesse em qualquer palavra que saísse
da boca de qualquer um. Somente duas bocas me importavam. As de Carlos e de
Leonardo. Amor e Amante.
- Vou trazer mais um. – E saiu em direção ao
salão do bar me deixando novamente com meus pensamentos.
Agora eu pensava na minha decisão. A decisão de me afastar.
Iria fugir de qualquer forma desse sentimento perigoso. Mas tinha que ter
cautela. Leonardo era envolvente e sensual e a única vez que realmente ficamos
foi tão intenso e estranho. Parecia que já sabíamos o que fazer e o que tocar.
Como apertar. O ritmo que iriamos usar. E quase me entreguei. O tempo não
deixou. Talvez um pedaço de mim também recuasse instintivamente. E por ser tão
intenso eu não podia e não queria me afastar. Mas não podia estar apaixonada
por ele e reconhecer que ele também sentia uma paixão por mim. Paixão passa eu
sei. E se entregar seria ver tudo se acabar em breve. Mas a qual custo? Qual
dor eu estaria disposta a sentir? Talvez todas, talvez nenhuma. E na hora pensei
que seria melhor me afastar porem não sumir. E descobri a pior das intensidades
de Leonardo. Ele estava egoísta, destemperado. Apaixonado. Uma briga com quem
não tinha esse nível de relação. Ou tinha? Se estávamos brigando assim é por
que tínhamos algo. Mas o que? E isso me intrigava.
Um riso alto da mesa do lado me distraiu. Eram quatro amigos
falando todas as sujeiras que uma mesa de bar com homens poderia ter. Parei
para prestar atenção. E falavam de vídeos postados nos chats
de seus telefones. Casos antigos, casos proibidos. Historia de derrotas e
historia de vitorias. Algumas me agradaram. Algumas eu também vivi. Mas hoje
realmente nada parecia me apetecer.
Minha cabeça já não conseguia razão. Muitas musicas
invadiam a mente, cada uma se encaixando com uma parte da historia. Cada um de nós tem pedaços de personagens
diversos, de autores diversos, fundidos em um jeito de ser, Leonardo sempre me dizia.
- Oi.
Um cara alto, vestido com uma camisa amarela com caimento
perfeito para seu corpo e um Black jeans surrado apontava para a cadeira que
estava na minha frente.
- Pode pegar. Estou sozinha.
- Não quero a cadeira. Queria o lugar.
- Você é muito bonito. Como se chama?
- Júlio. E você?
- Júlio, desculpe. Mas eu estou sozinha. Totalmente. E isso
significa que não gostaria da sua companhia hoje.
- Se eu pedir seu telefone então? Para o hoje passar e eu te
ligar?
- Adorei. – disse rindo. – Mas não. Hoje não é seu dia de
sorte.
- Ok. Um dia então a gente se esbarra moça sem nome.
- Boa noite.
- Boa noite.
A conversa me pareceu bem agradável, mas eu precisava de
foco, não de distração. Eu precisava escolher. Não que a escolha não estivesse
feita. Ela estava. Eu ficaria com Carlos. Era isso que eu pensava. Mas não sei
se era isso que eu queria. Eu o amava, mas amor é suficiente? Leonardo,
encantador e charmoso, me despertava paixão. Mas haveria dor. Muita dor. E será
que paixão e encanto são suficientes? Como eu poderia me livrar dessas dúvidas?
Como resolver minhas indagações?
E no meio de tantos pensamentos e peças de quebra-cabeças
dançando fora de lugar na minha mente, outra interrupção:
- Rachel? – A voz era familiar demais. Causou-me arrepio.
Olhei pra cima e confirmei. Meu coração bateu mais forte. Perdi o chão. Perdi a
postura. Perdi tudo. Já não conseguia mais raciocinar. Na minha frente estava a
pessoa que mais arrebatou meu coração, mente e corpo. Não podia ser, mas era. E
justo nesse momento.
- Oi, oi. – eu disse gaguejando. E sem pedir sentou-se.
- Quanto tempo. Por que você fugiu? Por que sumiu?
- Esse não é um bom jeito de começar.
- Verdade. Vou começar melhor então. Garçom! Um copo para
mim.
- Você não devia estar aqui. Eu não deveria te deixar
sentar.
- Eu sentei, não sentei? Você precisa me ouvir.
- Por quê?
- Porque mudei. Meu pai morreu. Minha mãe se suicidou logo
depois. A família desmoronou.
- E sua irmã? – fingi não me abalar com a notícia. Meus
antigos sogros estavam mortos. E eu nunca mais iria vê-los. E eu os adorava.
- Esta bem. Esta grande. Eu cuido dela agora. Posso te
perguntar uma coisa?
- Não precisa. Eu vou te responder. Eu te amava. Mas eu
sofri. Abdiquei de tudo. Vivi por você e para você. E isto não estava certo. Eu
precisava me afastar. Você não se importava comigo.
- Não é verdade – esbravejou me interrompendo. – eu sempre
me importei. Também te amei. Mas não te amei direito. E quero te amar direito
agora. Mudei. Amadureci.
- Não faz isso. Não me fala isso. – sua mão já tocava meu
rosto com delicadeza como antigamente. Seus dedos entrelaçavam meus cabelos.
- Adorei seu novo corte. Combinou. Deixa eu te amar. Eu te
amo. Você sabe disso.
- Eu também te amo. Nunca deixei de te amar.
- Rachel. Quero te dar um beijo.
- Roberta. Não peça isso.
- Um beijo, Rachel.
Chamas antigas se acenderam. O arrepio na espinha. O calor
nos pés e nas coxas. O conforto que nunca encontrei em ninguém. Não iria ver
mais o Carlos. Não iria mais falar com o Leonardo. Eu era novamente de Roberta e por ela e para ela eu iria viver.