A gaveta
A gaveta... Para muitos é apenas mais um pedaço de um
móvel de decoração. Talvez de um rack na sala de estar, talvez da estante do
quarto de tv, talvez da pia da cozinha, talvez do guarda-roupa, talvez da
escrivaninha, talvez do armário do banheiro talvez, talvez, talvez...
Existem tantos talvez quando se fala de uma gaveta, que a
dimensão do que ela é de verdade perde um pouco o sentido. A gaveta é um pedaço
de qualquer móvel de qualquer parte talvez de uma casa, talvez de um
escritório, talvez de um restaurante, talvez de um museu, talvez de um
hospital, talvez, talvez, talvez...
Dando importância ao que ela é realmente, percebe-se ser
como uma caixa talvez retangular, talvez quadrada, talvez oval, talvez
disforme, talvez, talvez, talvez... Percebe-se que não possui tampo superior, e
que desliza no móvel talvez que estiver, para fora abrindo, e para dentro,
fechando.
A gaveta é talvez funda, como um baú, talvez rasa, como um
areeiro, talvez estreita, como um incensário, talvez, talvez, talvez...
A gaveta é mais do que esse monte de talvez. A gaveta é
um mundo a parte, um universo infinito de particularidades, desejos, e
lembranças. Ali se escondem os erros e tristezas de uma mente túrbida, ou se
protegem os comprovantes de vitórias de uma mente triunfante. Os segredos mais
íntimos da adolescente apaixonada descobrindo seu corpo, ou as riquezas
inocentes do jogo de bafo do fundo da escola.
O mundo que a gaveta guarda é secreto, não pode ser posto
em lugar algum que não ali. As cartas do amor perdido na guerra, ligeiramente
fora do cotidiano do novo casamento, garantindo a alguém todas as alegrias do
mundo, as vivas e as póstumas. O mundo da gaveta, onde não há ser vivo, só há o
etéreo, o transcendente, o impulso de viver disfarçado de um simples aparato de
guardar papéis.
Os bilhetes dos ex-namorados, os bilhetes das
ex-namoradas, um único e solitário bilhete da Beatriz de Caio Fernando Abreu,
os bilhetes anônimos recebidos em buquês de rosas, caixas de chocolate, e aviõezinhos
de folha de caderno arrancada às pressas antes da professora chegar, com marca
de rasgo no canto inferior.
Fotos e mais fotos e mais fotos antigas, guardadas a sete
chaves, amareladas pelo tempo, com sorrisos há muito apagados, com marcas de
dedos, de lágrimas, de amassos de mãos revoltadas e tristes e desesperançadas e
melancólicas e trêmulas. Canhotos de cinema, de teatro, de partidas de futebol,
de concertos de músicas, de bailes, de festas, pulseiras do Senhor do Bonfim,
anotações breves de nomes de livros... Livros, revistas, caderninho de
telefone, poesias perdidas num mar de amadurecimento, letras de músicas
compostas em sonhos adolescentes em jovens tardes de domingo, flores e emoções.
A gaveta, com seus inúmeros documentos de identidade,
cpf, certificado de reservista, título de eleitor, canhotos de comprovação de
votação, carteira de trabalho cheia de salários menores do que merecido e
férias vencidas e fgts sem resgate por causa da ansiedade de ser feliz,
comprovantes de residência, chips de celulares que não se usa mais, extratos
bancários de contas abertas para desafogar a conta anterior, correspondências
de cobrança de atrasos na prestação do carnê, cartões de crédito, faturas de
cartão de crédito pagas, pendentes de pagamento, vencidas sem pagar, consórcio
da motoca que levaria para onde o vento apontasse.
A gaveta, com os prospectos dos apartamentos visitados
nos fins-de-semana que eram para descansar, mas que nunca serviram ao
propósito, com os cálculos dos corretores de tridente, chifre e rabos pontudos,
lhe vendendo a apartamento dos seus sonhos, com vista para o Corcovado com o
Cristo Redentor, Pão-de-açúcar, Pedra da Gávea, e o Cemitério São Joao Batista
onde estão enterrados tais famosos de outrora.
O universo da gaveta onde se encontram as vitaminas C
para não pegar resfriado, a pílula para dormir depois de um dia estressante de
trabalho, as gotinhas para desentupir o nariz daquela chuva de verão com ventos
frios vindos de uma tempestade polar que não deveria ter chegado ao Rio de
Janeiro, o vidrinho e as seringas para as injeções contra as enfermidades da
enchente da Praça da Bandeira no dia em que choveu três vezes mais do que o
esperado para todo o mês de Agosto pela previsão do tempo, o engov para não se
sentir no dia seguinte como se tivesse sido atropelado por um caminhão
carregado de inconsequência juvenil, ou com o gosto de guarda-chuva na boca
mesmo, a cápsula que se toma diariamente para controlar a cirrose causada pela
surdez de quando seus pais falavam que beber todo dia não era solução para
esquecer seus problemas. A gaveta, com a gaze e o Gelol para aquelas pancadas
desatentas no jogo de bola, e as pomadinhas milagrosas que curam qualquer
parada que só a avó do seu amigo sabe onde compra.
Lá, naquela gaveta, de meias furadas misturadas com
cuecas velhas que não cabem mais, mas que ali continuam na ânsia de se perder
dez quilos até o casamento do irmão. Onde estão as mil coisas que não se usa
mais, mas que se guarda mesmo assim para caso algum dia possa precisar, mesmo
que esse dia não chegue nunca.
A gaveta, onde está a Bíblia, seus panfletinhos de igreja
com o roteiro da missa, que já se sabe de cor e salteado, mas que se leva mesmo
assim para se lembrar daquela em especial, dos papeizinhos de santos, Santo
Antônio para conseguir um marido, São Jorge para proteção, Virgem Maria para
ter paz, São Pedro para ter praia no fim-de-semana, Santo Expedito para as
causas impossíveis, e outros santos de causas impossíveis também, e até aquele
panfletinho da Escrava Anastácia que dava medo nos netinhos.
A gaveta, que talvez guarde, talvez esconda, talvez,
talvez, talvez...
A gaveta que, dependendo do dia, talvez esteja na minha
caixa torácica, talvez na minha caixa craniana, talvez, talvez, talvez...