sábado, 7 de setembro de 2013

A Gaveta

A gaveta

            A gaveta... Para muitos é apenas mais um pedaço de um móvel de decoração. Talvez de um rack na sala de estar, talvez da estante do quarto de tv, talvez da pia da cozinha, talvez do guarda-roupa, talvez da escrivaninha, talvez do armário do banheiro talvez, talvez, talvez...
            Existem tantos talvez quando se fala de uma gaveta, que a dimensão do que ela é de verdade perde um pouco o sentido. A gaveta é um pedaço de qualquer móvel de qualquer parte talvez de uma casa, talvez de um escritório, talvez de um restaurante, talvez de um museu, talvez de um hospital, talvez, talvez, talvez...
            Dando importância ao que ela é realmente, percebe-se ser como uma caixa talvez retangular, talvez quadrada, talvez oval, talvez disforme, talvez, talvez, talvez... Percebe-se que não possui tampo superior, e que desliza no móvel talvez que estiver, para fora abrindo, e para dentro, fechando.
        A gaveta é talvez funda, como um baú, talvez rasa, como um areeiro, talvez estreita, como um incensário, talvez, talvez, talvez...
            A gaveta é mais do que esse monte de talvez. A gaveta é um mundo a parte, um universo infinito de particularidades, desejos, e lembranças. Ali se escondem os erros e tristezas de uma mente túrbida, ou se protegem os comprovantes de vitórias de uma mente triunfante. Os segredos mais íntimos da adolescente apaixonada descobrindo seu corpo, ou as riquezas inocentes do jogo de bafo do fundo da escola.
            O mundo que a gaveta guarda é secreto, não pode ser posto em lugar algum que não ali. As cartas do amor perdido na guerra, ligeiramente fora do cotidiano do novo casamento, garantindo a alguém todas as alegrias do mundo, as vivas e as póstumas. O mundo da gaveta, onde não há ser vivo, só há o etéreo, o transcendente, o impulso de viver disfarçado de um simples aparato de guardar papéis.
            Os bilhetes dos ex-namorados, os bilhetes das ex-namoradas, um único e solitário bilhete da Beatriz de Caio Fernando Abreu, os bilhetes anônimos recebidos em buquês de rosas, caixas de chocolate, e aviõezinhos de folha de caderno arrancada às pressas antes da professora chegar, com marca de rasgo no canto inferior.
         Fotos e mais fotos e mais fotos antigas, guardadas a sete chaves, amareladas pelo tempo, com sorrisos há muito apagados, com marcas de dedos, de lágrimas, de amassos de mãos revoltadas e tristes e desesperançadas e melancólicas e trêmulas. Canhotos de cinema, de teatro, de partidas de futebol, de concertos de músicas, de bailes, de festas, pulseiras do Senhor do Bonfim, anotações breves de nomes de livros... Livros, revistas, caderninho de telefone, poesias perdidas num mar de amadurecimento, letras de músicas compostas em sonhos adolescentes em jovens tardes de domingo, flores e emoções.
            A gaveta, com seus inúmeros documentos de identidade, cpf, certificado de reservista, título de eleitor, canhotos de comprovação de votação, carteira de trabalho cheia de salários menores do que merecido e férias vencidas e fgts sem resgate por causa da ansiedade de ser feliz, comprovantes de residência, chips de celulares que não se usa mais, extratos bancários de contas abertas para desafogar a conta anterior, correspondências de cobrança de atrasos na prestação do carnê, cartões de crédito, faturas de cartão de crédito pagas, pendentes de pagamento, vencidas sem pagar, consórcio da motoca que levaria para onde o vento apontasse.
            A gaveta, com os prospectos dos apartamentos visitados nos fins-de-semana que eram para descansar, mas que nunca serviram ao propósito, com os cálculos dos corretores de tridente, chifre e rabos pontudos, lhe vendendo a apartamento dos seus sonhos, com vista para o Corcovado com o Cristo Redentor, Pão-de-açúcar, Pedra da Gávea, e o Cemitério São Joao Batista onde estão enterrados tais famosos de outrora.
            O universo da gaveta onde se encontram as vitaminas C para não pegar resfriado, a pílula para dormir depois de um dia estressante de trabalho, as gotinhas para desentupir o nariz daquela chuva de verão com ventos frios vindos de uma tempestade polar que não deveria ter chegado ao Rio de Janeiro, o vidrinho e as seringas para as injeções contra as enfermidades da enchente da Praça da Bandeira no dia em que choveu três vezes mais do que o esperado para todo o mês de Agosto pela previsão do tempo, o engov para não se sentir no dia seguinte como se tivesse sido atropelado por um caminhão carregado de inconsequência juvenil, ou com o gosto de guarda-chuva na boca mesmo, a cápsula que se toma diariamente para controlar a cirrose causada pela surdez de quando seus pais falavam que beber todo dia não era solução para esquecer seus problemas. A gaveta, com a gaze e o Gelol para aquelas pancadas desatentas no jogo de bola, e as pomadinhas milagrosas que curam qualquer parada que só a avó do seu amigo sabe onde compra.
            Lá, naquela gaveta, de meias furadas misturadas com cuecas velhas que não cabem mais, mas que ali continuam na ânsia de se perder dez quilos até o casamento do irmão. Onde estão as mil coisas que não se usa mais, mas que se guarda mesmo assim para caso algum dia possa precisar, mesmo que esse dia não chegue nunca.
            A gaveta, onde está a Bíblia, seus panfletinhos de igreja com o roteiro da missa, que já se sabe de cor e salteado, mas que se leva mesmo assim para se lembrar daquela em especial, dos papeizinhos de santos, Santo Antônio para conseguir um marido, São Jorge para proteção, Virgem Maria para ter paz, São Pedro para ter praia no fim-de-semana, Santo Expedito para as causas impossíveis, e outros santos de causas impossíveis também, e até aquele panfletinho da Escrava Anastácia que dava medo nos netinhos.
            A gaveta, que talvez guarde, talvez esconda, talvez, talvez, talvez...

        A gaveta que, dependendo do dia, talvez esteja na minha caixa torácica, talvez na minha caixa craniana, talvez, talvez, talvez...

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