sexta-feira, 14 de setembro de 2012


 Carta para Sofia (Paulinho Cerezo)


           Inclinou-se sobre mim, beijou-me a fronte, virou-se, murmurou algo. O beijo pareceu mais gelado e distante do que o último planeta do Sistema Solar. Fosse outros tempos e eu sentir-me-ia enternecido, mas o corpo de Sofia ainda me despertava ardentes anseios, embora houvesse já perdido algum viço da mocidade. Aprazia-me, ainda, a idéia de enlaçá-lo com meus braços, mesmo tendo a certeza de que meu braço esquerdo adormeceria antes de mim.

  Aquele seu horrível dedo mindinho do pé que me estorvou por anos me leva, agora, a compará-lo a um pequeno fio de cabelo encontrado em um apetitoso manjar; não seria um empecilho significativo a ponto de me fazer abandonar o deleite do acepipe. No entanto, tenho desfrutado tão pouco desse quitute que seria melhor não fazê-lo, visto que é muito pior ter apenas uma parte de um agradável prazer do que não saber de sua existência. E tratando-se desse portentoso e alvo manjar ao meu lado, ainda há como somatório o fato de já muito ter regozijado-me com ele. O suco de Sofia (eu a espremia carinhosamente de tanto desejo) era como um dulcíssimo mel, conquistado pelas grotescas mãos de um urso perdido em uma modorrenta floresta. É incredulante como um bruto animal é capaz de cuidar tão delicadamente de um favo de mel que lhe apraz. De tê-la, assim, em minhas mãos de urso (conquanto seja relevante dizer que não sou tão hirsuto ou muito menos tenho o tamanho de um), foi que tanto esforço fiz para que, ainda que a pudesse segurar com firmeza, também conseguisse dela extrair toda a doçura.
Durante alguns poucos anos, pude contemplar seus inúmeros sorrisos, tão vitais quanto o oxigênio presente no ar atmosférico, e comprazia-me, tal criança ante um simples gracejo. Quando, neste leito de morte do nosso amor, teus cabelos me enredavam, eu só os afastava um pouco, sem reclamar, e me deixava com a sua desnudada nuca. Sua ausência de perfume industrial, obstante minha alergia, deixava o cheiro cru de sua pele a balsamar meus sonhos, onde aparecia linda, dourada, e fazendo chacotas de nossas vicissitudes.

Alguma coisa nublou seus sorrisos, Sofia, e necrosou meu coração. Dorme, sonha com dias melhores, busca ser feliz, que eu também já não sou. Mas é incrível como você ainda parece um anjo, dormindo, enquanto pesa sobre meus músculos a incapacidade de resgatar seu amor de um infindável poço de tristeza. Estes pensamentos são como vermes que me comem vivo. Dorme, sorria nos seus sonhos, que, nos meus, seu sorriso é sarcástico e até demoníaco. Não quero mais, Sofia. Esses olhos redondos e expressivos, que lhe são bem atribuídos, ainda possuem a árdua tarefa de iluminar o mundo, assim como o sol, e não serei o responsável por deixar que se extinguam. Aproveito seu sono pesado e saio sem pressa. Até requentado é bom esse seu café. Acho que te vi sorrir enquanto dormia. Acho que vou chorar quando chegar à esquina. Acho que ainda te amo, mas acho mais ainda, quer dizer, tenho quase a certeza, de ter-te amado mais do que às outras. Sinto muito amor. Sinto muito, amor, sinto muito.

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