A chave fez um barulho ensurdecedor na fechadura. Era a pior
coisa que poderia acontecer à Talita naquele momento. Ela tentou conter o
barulho que era pior que o de uma torcida ensandecida com o gol salvador no fim
do jogo. Como um enxame de abelhas raivosas querendo vingar a morte de sua
rainha. Mas esse barulho só acontecia aos ouvidos de Talita. A realidade era
diferente. Esse barulho com certeza não acordaria sua mãe Irene. Ela
continuaria dormindo calmamente se não fosse por um simples detalhe: Dona Irene
estava acordada esperando Talita.
O leitor agora poderia pensar: Tenho uma mãe assim! Claro,
todos temos. Mas Dona Irene era pior. Por que pior? Por que Talita era, como
diziam seus avós, complicada.
Talita mal fechou a porta e Dona Irene não tardou a fazer um
barulho com seus chinelos no chão para atrair a atenção da filha. Aprumou-se em
sua cadeira, pigarreou forçadamente e não resistiu:
- Espero que você não esteja bêbada.
- Oi mãe. Não estou não. – E tentou ir para o quarto que
ficava a poucos passos que seriam difíceis de completar nesse momento.
- Mas você bebeu! Eu sinto daqui.
- Sim mãe. Só um pouquinho. – E Talita manteve foco em,
sorrateiramente, ir para seu quarto.
- Volta aqui Talita! Eu quero conversar.
Talita voltou. Indócil. Incomodada. Não era possível que sua
mãe seria tão ridícula a esse ponto.
Agora o leitor sendo
um filho pensaria em quantas vezes teve que passar por essa situação
estapafúrdia. Sendo um pai pensaria em por que os filhos fazem isso e o obriga
a tomar atitudes como essa. Bom, são as regras. Jovens as quebram, adultos as
fazem. Pais as fazem cumprir. Ou tentam o melhor de si.
- Fala mãe! O que você quer?
Dona Irene se aproximou de Talita e fungou profundamente.
Seus olhos se perderam no espaço, no chão. Tornou a erguê-los e olhando para
Talita disse:
- Você dormiu com alguém?
- Sim. E não seja antiquada. Eu não dormi. Eu transei mãe. Por
quê? Não posso?
- Filha, (e um breve momento de ternura dominou Dona Irene)
você não pode dormir com rapazes que você mal conhece. Não pega bem.
- E por que não pega bem? Eu faço o que quero mãe. Eles não
fazem o que querem?
Aproveito agora então,
para descrever Talita. Talita era linda. Mas o importante realmente não era
isso. A parte física de Talita é o de menos, mesmo que ela fosse considerada
uma pintura de Caravaggio ou uma escultura de Rodin. O que importava mesmo era
o que era Talita. E ela era
mágica. Eclética. Espontânea. Alegre. E tinha um Rodin, um Caravaggio, um
Strauss (e às vezes um Metallica), um Fellini (e em grande parte um Woody
Allen) e por que não um pouco até de Lavoisier dentro de si. Talita era uma
Madame Bovary do século XXI! Mas era incompreendida. Atrozmente podada.
Ferozmente limitada.
- Mas filha. Você não pode. – e Dona Irene passou a se
incomodar com a postura da filha – Eles podem. Você não. O mundo é assim.
- Não mãe. Não é. Foi o seu mundo. Meu mundo é diferente.
Assim como o seu foi diferente do da sua mãe!
- Minha filha, assim você fica parecendo uma piranha. Daqui
a pouco você vai ser mal falada pela vizinhança.
- Mãe, não importa. Eu quero os mesmos direitos e mesmos
deveres de qualquer pessoa. Quero ser igual. Quero poder fazer o que quero na
hora que quero.
- Não! Não é assim. Minha filha não vai ficar solta por ai.
Como uma qualquer, fácil, que não se importa com o que as pessoas vão dizer.
Assim você não vai se casar.
- Não seja hipócrita. Você era divorciada e ainda assim meu
pai ficou com você. Pelo que você era. Não pelo que a sociedade dizia o que
você era.
Outra pausa se faz
aqui para o leitor entender. Talita havia perdido o pai há três anos. Ela tinha
apenas quinze anos e sua irmã cinco. E ao contrario do que alguns poderiam imaginar,
o comportamento e personalidade de Talita não foram afetados
significativamente pela perda. Ela sentiu a falta do eterno ombro amigo, como a
maioria também iria sentir, mas não alterou radicalmente nada do que Talita foi
e é.
- Nunca repita isso! – Dona Irene levantou a mão em riste
ameaçando passar dos limites verbais. – Você não tem esse direito!
- Direito de que? De dizer o que penso de você? Direito de
me defender das suas acusações? Sim eu tenho. Sou uma pessoa. Eu transo com
quem quero e quando quero. Seja meu namorado ou alguém que conheci hoje. Não
importa. Isso não me diminui e não da direito a ninguém de me diminuir. Nem
você nem ninguém.
Dona Irene viu que esse caminho não era a solução. Apelou
para o emocional. Arriscando um ultimo argumento falou:
- E amor minha filha? Desse jeito você nunca vai conhecer o
amor. Amores rápidos não são amores. Perdem-se no tempo facilmente. E ninguém
gosta de saber que não é especial. Que você não tem nada a oferecer que seja
único. Já pensou nisso?
- Mãe, eu não estou oferecendo nada a ninguém. Não quero
nada em troca. Não estou me vendendo. E amo toda vez! Se amo muito, repito. Se
amo pouco, esqueço. Amor é uma sequencia de pequenos amores que se completam e
se unem em um amor só. E um dia vou encontrar um amor desses como todo mundo
encontra. Por que sou uma pessoa com defeitos e virtudes que vai se encaixar
com outros defeitos e virtudes.
Talita deu uma pausa e falou para sua mãe enquanto beijava
levemente sua testa:
- Mãe, eu sou feliz. Isso que é importante. Eu sei que você
se preocupa. Mas deixa eu ser feliz. Eu te amo.
Dona Irene fez menção de responder, mas Talita já havia
entrado em seu quarto. E ali, sozinha no corredor que unia a sala dos quartos
ela balbuciou quase para si:
- Eu também te amo minha filha.
E caminhando ate o quarto abriu a porta de Camila, sua filha
mais nova e a viu dormindo tranquilamente. Foi para o quarto e se deitou. E
quase pegando no sono Dona Irene sentiu a aproximação de Talita.
- Mãe. Eu entendo seu amor de mãe. Você quer o melhor pra
mim. Entendo seu amor, entendo sua proteção. E você está certa. Obrigado por
isso. E vou te contar a verdade. Hoje não dormi com ninguém. Fui me encontrar
com Marcos. Vamos ficar juntos.
- E ele é um bom rapaz?
- Acho que me ama. E eu amo ele. E mãe, preciso mais do que
nunca de você. – a voz de Talita começava a embargar e lagrimas corriam de seus
olhos. – Você vai ser avó.
Dona Irene abriu um sorriso imenso e seus olhos se
entregaram à felicidade. Seu peito ardia de soluços. E as duas se abraçaram
firmemente. O Amor, em todas as suas formas e em todas suas intensidades estava
agora transbordando nesse simples abraço.