Júlio e
Pietra eram um a versão do outro. Talvez por isso não se falassem mais. Os
nossos defeitos em outras pessoas ficam muito piores, quase insuportáveis. Mas
essa história não é sobre defeitos e virtudes, até poderia ser, mas talvez seja
mais interessante deixar para outra. Essa história é sobre histórias
interrompidas e sobre como os caminhos carregam as pessoas para situações
limite. E uma história interrompida é um ciclo aberto, perigoso. A história de
Júlio e Pietra terminou assim, interrompida. Ou melhor, não terminou. Ficou
presa no vento das vidas, sempre com uma ponta de pensamento: E se amanhã?
***
O ar frio entrava pela narina de Júlio. Era inverno e a
espera estava maltratando os ossos. Machucando o peito. Eram tantas coisas na
cabeça, tantos medos e anseios. E o tempo esgotando impiedosamente. Estava
perto do horário combinado e começou a se sentir como em uma historia de um
livro do Harlan Coben em que o personagem principal após longos anos havia
marcado um encontro com sua esposa que esteve desaparecida. A ansiedade, o
medo, a negação, a aceitação e claro a impaciência.
“I call your name, but you are not there.
Was I to blame, for being unfair”
Um barulho surgiu atrás de Júlio e assustado ele se virou. Pássaros
saiam em debandada de uma árvore por perto. ‘Que clichê’, pensou Júlio. Só
faltava aparecer um desses vilões de filme de terror e mata-lo quando ele se
virasse para frente. Os pensamentos começaram a vagar. E veio na cabeça a
historia dele e de Pietra. Aquele Café no saguão do hotel. Como tudo aconteceu.
Tao inesperado. O saguão...o Café.
- Oi.
- Oi. Pois não?
- Meu nome é Pietra. Estamos lendo o mesmo livro. Olhe!
- Ahn, sim – Júlio olhou para o livro On the Road do Jack
Kerouac – Muito bom livro. Hã...você que se sentar?
- Não sei. Na verdade não sei por que vim falar com você.
Desculpe, acho que me excedi.
- Não, não. Fica. Vamos pelo menos discutir o livro.
- Não, preciso ir. – E Pietra se virou para voltar para sua
mesa porem Júlio pegou em sua mão com firmeza e suavidade.
- Não vá. Por favor.
***
Júlio e Pietra estavam no elevador do hotel. A tensão entre
eles era nítida. Não conseguiam ficar tão longe e tão perto um do outro. Não
resistiram. Os beijos eram acalorados e as mãos exploravam o corpo um do outro.
Seios, lábios, coxas, peitos. As mãos entravam e saíam de dentro das roupas
querendo tocar pele com pele. Maciez e arrepios. Queriam sentir o calor do
toque e da paixão. Entraram no quarto e a tarde se perdeu na madrugada.
***
Júlio e Pietra se encontraram mais tarde no dia seguinte, no
mesmo lugar. Nas mãos o mesmo livro. Discutiram Kerouac. Riram juntos. Contaram
sobre suas vidas. Conectaram-se. Porem,
no dia seguinte não se viram. A saudade arrematou os corações, ou seriam as
cabeças? Não importava. Já sentiam a falta um do outro. Encontraram-se alguns
dias depois.
“quando a gente conversa
Contando casos besteiras
Tanta coisa em comum
Deixando escapar
segredos”
- Senti falta de você. – disse Júlio.
- Eu também – disse Pietra
Dias, meses se passaram. Nesse tempo Pietra começou a
namorar. Terminou. Júlio engatou um romance que teve fim. Affairs iam e vinham.
Nada duradouro, nada definitivo. As confissões aumentaram. Começaram a conhecer
um ao outro como o livro que liam juntos. As reações, o que cada um queria
dizer sem precisar realmente falar. O sentido do que queriam dizer. Começaram
as brigas. Discussões sobre posições, sobre o que pensava cada um. As posturas
que mudaram sem perceber. E um dia sentados em um café tiveram um encontro como
um qualquer.
- Como você esta? Parece preocupada.
- Estou bem. Esse final de semana levei uns amigos para
beber lá em casa.
- Que bom. E se divertiram?
- Claro. Amigos meus tem que se divertir. – disse Pietra
rindo
- Entendi.
- É.
Alguma distancia estava abismando os dois. Como se quisessem
discutir o indiscutível. Porem com medo de falar sobre isso e ver tudo
desmoronar.
- Me diz como você esta. Você realmente parece preocupada.
- Não estou. A gente se vê depois?
- Pietra. Você esta
me enganando. E sabe disso. Esta fazendo de proposito.
- Nós não somos nada um do outro. Não me cobre. Você sabe
que eu não suporto isso.
- Sei. Mas você também me cobrou e também não gosto disso.
- Não interessa.
- Você não quer mais me ver. É isso.
- Por que diabos eu iria querer isso?
- Pietra, não entendo. Nos damos tão bem juntos. Não entendo
por que não podemos continuar nos dando bem. Não vou mais cobrar você.
***
Júlio não aguentava mais essa espera. Pietra estava
atrasada. Falaram-se tão rápido da ultima vez. E depois permaneceram quase dois
meses sem se falar. Júlio já não sabia se ambos se afastaram ou apenas um, e
tinha até medo de saber. Será que foi ela? Será que ele também deixou passar
tempo demais? Por que não se procuravam
para conversar? O fim mesmo? Assim, interrompido? Sem mais, sem menos?
Porem, depois de um tempo, Júlio recebeu um telegrama de
Pietra marcando um encontro. Ela havia feito um convite para se encontrarem e conversar,
quem sabe corrigir erros. Ou pelo menos acabar com o clima de briga que havia
ficado. A aspereza das palavras. Tudo que estava estranho entre eles. Poderiam
ate não se falar mais ou não se ver mais depois. Mas teriam a certeza de que não
foi interrompido, não havia mais aquele câncer consumindo a relação que
insistia em existir justamente por isso. De certa forma foram importantes um ao
outro. E isso já teria feito valer a pena.
“Tente
E não diga que a vitória
esta perdida
Se é de batalhas que se
vive a vida
Tente outra vez”
Sete horas. Oito horas. Nove horas. Júlio percebeu que Pietra
não viria. Ele pensava por que nem uma noticia. E se perguntava por que a
historia havia passado. Mais uma história interrompida. E Júlio saiu com frio e
neve dentro de si. Pegou um ônibus e voltou para casa. Ao entrar sentou-se no
sofá e pensou como seria se tivessem se encontrado. Deu um sorriso brando e
falso para si e decidiu dormir.
***
Pietra estava sentada em sua cama, olhando para o livro On
the Road, onde na ultima pagina estava escrito: “Esse era o meu. Já que você
perdeu o seu, te dou de presente. Nunca jogue ele fora senão estará jogando a
mim.”.
Olhou para o exame de gravidez. Positivo. Não podia ser, não
era para ser. Ela não queria essa marca já que não iria vê-lo mais. Não queria,
não podia. De jeito nenhum. Mas o exame estava ali dizendo justamente o contrário.
“você sonhava acordada
Um jeito de não sentir
dor
Prendia o choro e aguava
o bom do amor
Prendia o choro e aguava
o bom do amor”
Pietra olhou mais alguns instantes para o livro. Pensou em
joga-lo fora, mas guardou em uma gaveta que talvez fosse aberta novamente no
futuro.